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Teodicéia: um resumo

fevereiro 10, 2015

epicurus

Se Deus existe, por que o mal?

Não existe uma resposta completamente satisfatória para essa pergunta. Há, contudo, alguns dados que podem nos ajudar a enfrentá-la com serenidade.

Podemos classificar o mal em dois tipos distintos: o mal físico e o mal moral.

Mal físico

O mal físico é a ausência de uma perfeição do ente corpóreo dada a sua essência (*).

De onde vem esse tipo de mal? Há vários elementos envolvidos em sua gênese. Pode-se dizer que ele vem da potência, ou seja, da capacidade de mudança, da diversidade e da interdependência causal dos entes.

Qual a origem última da mudança, da diversidade e da interdependência causal? A metafísica responde: Deus.

Devemos, então, atribuir a Deus a existência do mal físico?

A resposta parece ser afirmativa, mas ela o é apenas num sentido secundário, ou seja, no sentido de que Deus cria um Universo em que o mal físico É POSSÍVEL.

Deus, contudo, não é causa direta do mal, já que os poderes causais, a multiplicidade e a variabilidade dos entes, embora dependentes diretamente de Deus quanto ao ser, pertencem aos entes enquanto agentes.

Deus causa as perfeições nos entes, mas as imperfeições vêm dos entes mesmos, dadas as suas essências e os poderes causais que possuem. “Não podemos responsabilizar a Deus pelo mal, enquanto este implica uma defecção propriamente dita; Deus não causa senão o bem e o ser” (Santo Tomás de Aquino).

O mal é um parasita do ser. Ele não pode existir a não ser como limitação do ser, como corte abrupto que impede sua plenitude.

Ora, sendo Deus o Sumo Bem, a plenitude do ser, é impossível que em Deus exista o mal. Deus é a realidade suprema na qual não há defeito, diminuição ou limitação.

Sendo as essências definidas por seus limites, Deus não possui essência, por não ter limite nenhum.

Deus não é bom no sentido de que tenha a bondade moral como uma propriedade do seu ser. Deus é bom por ser a medida de todo o bem e perfeição, inclusive o bem moral.

O que é mais perfeito o é na medida em que reflete a perfeição divina. Há uma hierarquia no ser, além de uma multiplicidade.

Poderia Deus ter criado um Universo diferente e melhor? Certamente. Se Deus tivesse criado um Universo composto apenas de substâncias imateriais, não haveria mudança temporal. Logo, também não haveria morte ou sofrimento físico.

Deus também poderia ter criado um Universo material sem dor, apenas com formas inanimadas. Ou poderia ter criado um Universo como o nosso em que as substâncias animadas racionais não tivessem doenças e nem morressem (**).

Por que Deus cria este Universo, com as propriedades que observamos, com a “quantidade de mal” que experimentamos?

Não o sabemos, mas podemos afirmar que, apesar de todo o mal que se “alimenta” do ser contingente, apenas o bem possui consistência ontológica e, no cômputo total da existência, o Universo é “muito bom” (***).

Compreendemos apenas uma infinitesimal parcela da realidade, e o problema do mal só pode ser solucionado se conhecermos a realidade total da criação, ou seja, todas as causas e todos os efeitos naturais e sobrenaturais.

A fé cristã nos dá a certeza de um final no qual o bem sobrepujará infinitamente qualquer efeito do mal neste mundo: Deus “enxugará toda lágrima de seus olhos e já não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor, porque passou a primeira condição” (Ap 21,4).

Mal moral

Parcela importante do mal que afeta o homem tem como causa não a contingência do mundo material, mas o livre arbítrio.

Como animal racional, o homem possui fins distintos dos outros viventes. Sua inteligência permite compreender a si mesmo e o mundo, e sua vontade livre o torna MORALMENTE RESPONSÁVEL por suas ações.

Quando o homem escolhe agir de um modo que contradiz a razão, ou seja, de um modo que contradiz aquilo que ele é (mormente seu fim último, que é a contemplação e o conhecimento de Deus) ele introduz no mundo um novo tipo de mal: o MAL MORAL, que projeta o mal físico para dentro da esfera espiritual.

De fato, no princípio, quando o primeiro homem e a primeira mulher foram criados por Deus, ambos receberam uma proteção especial contra os males físicos.

A humanidade perdeu os dons preternaturais da imunidade à dor e à morte, contudo, quando Adão e Eva desobedeceram a ordem divina, querendo ser independentes do Bem Supremo e buscando ser felizes sem o seu Criador.

A Queda nos deixou inteiramente sob o domínio da natureza e à mercê da causalidade ordinária do mundo físico. Pela Queda, o homem deixou de ser uma criatura privilegiada para tornar-se um pária cósmico.

Seu corpo ficou sujeito a defeitos de todo o tipo, incluindo doenças degenerativas, defeitos de nascença e outras contingências terríveis que tornaram a vida dolorosa e miserável.

Embora a descendência de Adão não seja responsável pela escolha do seu progenitor, ela sofre as consequências de sua escolha desastrosa de um modo análogo ao de uma família na qual os filhos inocentes perdem a herança quando o pai dissipa imprudentemente o seu patrimônio.

Tinha de ser assim? Não, não tinha. A Queda foi mais uma contingência, fruto de um ato livre de alguém responsável pelo futuro de toda uma espécie.

E essa responsabilidade decorre da causalidade, ou seja, do poder de produzir efeitos que Deus concedeu às suas criaturas, especialmente as criaturas racionais.

Meus filhos não são culpados por meus erros, mas ainda assim meus erros afetam suas vidas por suas consequências. E essas consequências produzem outros efeitos através do tempo.

O que fazemos aqui perdurará para sempre. Cada ação humana no tempo desencadeia uma reação em cadeia imprevisível de eventos.

Trilhões de decisões hoje ajudam a determinar o amanhã e quanto mais distante no futuro olharmos, maiores serão os efeitos de uma escolha aparentemente insignificante no presente.

O poder causal conjugado com a vontade da criatura racional traz em seu bojo uma responsabilidade quase incomensurável quando olhamos para a história como um todo.

Ao ateu que acusa Deus de ser moralmente responsável pelos males do mundo, deve-se responder:

Primeiro, Deus não está sob a lei moral, mas é o seu fundamento. Cobrar de Deus uma obrigação moral para com sua criação é algo inteiramente descabido.

Segundo, o mal só é mau porque Deus existe como bem absoluto.

O ateísmo e o sofrimento sem culpa

O protesto do ateu contra o sofrimento inocente é um protesto contra a própria estrutura da realidade. Mas é um protesto vazio se não existir uma base objetiva para afirmar que alguma coisa é boa ou ruim.

No ato mesmo de condenar Deus pelas injustiças e falhas da criação, o ateu apela implicitamente para o Deus que nega com veemência.

Em outras palavras: ao dizer que um Deus que permite o sofrimento é mau, o ateu invoca uma ordem superior de bondade que nada mais é do que o próprio Deus acusado e rejeitado.

“Como você ousa criar um mundo no qual exista tanta miséria que não seja nossa culpa? Isso não está certo. É algo completamente… completamente mau. Por que eu devo respeitar um Deus caprichoso, malévolo e estúpido que cria um mundo tão repleto de injustiça e dor?” (Stephen Fry).

Mas como dizer que algo é mau se não existe o bem absoluto? Como dizer que alguém é caprichoso, malévolo e estúpido se não existe ordem, bondade e inteligibilidade alguma na natureza?

Como falar de injustiça e dor se justiça e alegria são apenas nomes vazios inventados para suportar uma realidade absolutamente indiferente e irracional?

Como reclamar do mal contra Deus se sem Deus não há nem bem nem mal, nem beleza nem feiúra, nem cosmos nem caos?

Se existe o mal, ou melhor, se as coisas que conhecemos são boas, mas são finitas e vítimas do defeito ontológico que chamamos de mal, então Deus existe.

Se não existe o mal nem o bem, então tudo o que existe é ilusão e nada. A única escolha coerente para um ateu é ser indiferente e abraçar o niilismo.

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Crianças com câncer ósseo

Vários níveis de causalidade entrelaçam-se e explicam a ocorrência do câncer ósseo numa criança.

Essa doença existe, antes de tudo, porque a criança existe: foi uma célula sadia de seu corpo que sofreu mutação e originou a doença.

Em outro nível causal, a existência desse câncer é consequência da falta adâmica.

O câncer existe, ainda, porque Deus quis criar um mundo com agentes causais interdependentes, mutáveis e eventualmente racionais, um mundo bom que refletisse suas perfeições de diferentes maneiras, mas que de Deus se distingue em virtude de sua contingência, tornando-o vulnerável ao mal tanto físico como moral.

O câncer desta criança produzirá efeitos que não conhecemos, e que resultarão num bem maior.

O mal da doença não é absoluto. A dor dura um tempo. A morte não é o fim. A felicidade eterna, por outro lado, nunca acaba e ultrapassa infinitamente qualquer sofrimento passageiro. O mal não será justificado, mas vencido.

Isto não significa, contudo, que o sofrimento inocente é algo fácil de aceitar. A esperança do Céu e a confiança na bondade de Deus não eliminam completamente a nossa angústia.

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A resposta para o problema do mal não é um argumento ou raciocínio irrefutável, não são palavras humanas.

A solução divina para o problema do mal é a Palavra Eterna encarnada, Jesus Cristo.

A resposta de Deus ao mal é o dom de sua própria vida infinita oferecida a nós no sacrifício supremo da Cruz.


(*) Por exemplo, pertence à essência de um cachorro o ter quatro patas funcionais. A falta de uma delas é um mal físico.

(**) Ele o fez – local e provisoriamente – no Éden.

(***) Que o Universo é “muito bom” o sabemos pela Revelação (Gn 1,31), mas também temos a intuição disso pelo desejo de continuarmos vivos e pela beleza, ordem e bondade que percebemos e amamos nos entes à nossa volta. Se o Universo fosse mal ou só um “pouco bom”, ninguém quereria viver nele.

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