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Ídolos

julho 25, 2020
WHAT IS IDOLATRY – STRICTLY SCRIPTURES

Idolatria: acreditar em vários deuses iguais a Deus, dignos do mesmo culto que Deus.

Há apenas um Deus, um único fundamento de todas as coisas, absolutamente simples, transcendente, fora de qualquer gênero ou classificação (Dt 6,4).

Na prática, a idolatria transfere para a criatura aquilo que é devido a Deus. O idólatra faz de um falso deus a sua razão de existir e sua esperança última.

O falso deus pode ser algo efetivamente existente ou um ideal na mente do idólatra.

Geralmente esse ideal é representado por um objeto físico através do qual o idólatra se dirige ao falso deus. Esse objeto é, estritamente falando, o ídolo.

O ídolo, na mente do idólatra, pode de algum modo conter ou controlar o falso deus. O culto idolátrico procura, através de sacrifícios, apaziguar e atrair a benevolência do falso deus para obtenção de algum benefício material ou espiritual.

Por outro lado, em sentido amplo, a idolatria pode significar a escolha de algum bem finito no lugar do Criador. Por exemplo, existe a idolatria do dinheiro, ou seja, a idolatria do poder de conquista de bens materiais (Mt 6,24).

Essa forma de idolatria é mais comum e especialmente tolerada em sociedades materialistas.

Outros ídolos: fama, poder político, o próprio país, algum indivíduo sobre o qual se projetam crenças e desejos impossíveis, o corpo saudável e belo, o conforto e o prazer, um futuro utópico em nome do qual se justificam os maiores crimes no presente.

O culto católico aos santos e à Santa Virgem

A Igreja afirma que, em Cristo e pela ação do Espírito, somos todos chamados a ser participantes da vida divina, ou seja, a sermos “deuses” por participação no ser de Deus (2Pd 1,4).

Os santos são aqueles que alcançaram essa meta. Podemos dizer que os santos são “divinos” por estarem unidos a Deus (Jo 17,22).

Mas os santos não são divinos por essência ou natureza. São criaturas divinizadas.

Nesse sentido, é possível falar que os santos (e os anjos bons) são “deuses” por participação.

Esses “deuses” não são como Deus de modo algum. Dependem de Deus quanto ao ser e quanto ao seu poder de ação no mundo.

O culto que se dá aos santos e aos anjos não é, de modo algum, o mesmo culto que é dado a Deus (Ap 22,8s).

A Igreja distingue: o culto a Deus é absoluto e último. Apenas Deus é Deus. A Ele damos tudo e sacrificamos tudo. Só Ele merece a verdadeira adoração (latria).

Já o culto aos anjos e aos santos é inteiramente relativo a Deus, que é fonte de sua bondade e santidade. A eles prestamos reverência, damos o justo louvor e pedimos seu auxílio em nossas necessidades, já que são intercessores queridos por um Deus que aprecia o uso de instrumentos para causar o bem (Lc 10,16).

A veneração dos anjos e santos é denominada dulia na teologia católica.

A distinção entre latria e dulia, repita-se, é absoluta no catolicismo.

Aos santos propriamente não damos todo o nosso ser nem tudo o que temos em sacrifício, embora seja justo, no caso particular da Santíssima Virgem, oferecer tudo a Deus por meio dela, já que Ele o fez por nós do mesmo modo (Gl 4,4).

Aliás, a Santíssima Virgem é um caso particular de dulia. Ela é digna da dulia máxima, hiperdulia, ou seja, ela está, sozinha, acima de todos os anjos e santos, unida estreitamente a cada pessoa da Santíssima Trindade (Lc 1,27-38).

Ainda assim, a Santíssima Virgem é um grão infinitesimal e invisível diante da glória da Trindade.

Portanto, na doutrina católica sobre o culto aos santos, aos anjos e à Santíssima Virgem, não há o menor traço do pecado de idolatria apontado pelos protestantes.

Por outro lado, cabe especialmente aos pastores (padres, bispos) orientar os fiéis para que tenham sempre em mente em seus atos de piedade e devoção aos santos que eles, os santos, são meros instrumentos de Deus, que eles não substituem a Deus e que a alegria deles é ajudar as almas a alcançarem a Vida Eterna em Deus.

“Quem a Deus tem, nada lhe falta, pois só Deus basta.” (Santa Teresa de Ávila)

Dignidade de Maria

julho 25, 2020

New Marian feast must be celebrated beginning this year - Vatican News

Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e homem.

Nascido duas vezes: a primeira do Pai, desde a Eternidade; a segunda de Maria, no tempo.

Filho de Deus e de Maria.

Logo, Maria é Mãe de Deus e Deus Pai é Pai de um homem.

Uma dupla geração da mesma Pessoa Divina, o Filho Eterno.

Tentemos, com base nisso, avaliar a dignidade da Virgem Santíssima. De qual criatura podemos dizer que gerou em si o próprio Deus feito homem?

A qual criatura foi dada tal graça? E quanta graça seria apropriada para preparar a graça de ser Mãe de Deus? (Lc 1,28-30)

Sim, porque Deus não faz nada sem preparação.

Para a vinda de Cristo ele preparou um povo santo.

E esse povo santo, mesmo depois de inúmeras traições, foi preservado em um resto fiel para a vinda do Messias (Sf 3,12s).

Esse resto fiel, por fim, cristalizou-se em Maria.

Ela é o Israel puro e sem mancha que Deus preparou para fazer sua tenda entre os homens.

Ela é a arca do testemunho definitivo, o testemunho do próprio Deus encarnado, a Aliança final e perpétua entre Deus e os homens (Lc 1,39-45; comparar com 2Sm 6,9-15).

Por ela Deus se recordou de suas promessas e as cumpriu fielmente (Lc 1,46-55, especialmente o v. 55).

Ela é o fim do Antigo e o começo do Novo.

Ela é o ponto de contato inicial da humanidade redimida com Deus, primícia do triunfo de Cristo.

Quis Deus depender de sua resposta livre para consumar o plano de salvação (Lc 1,38).

Salvando Deus Maria, por meio dela nós fomos salvos.

Porque apenas por ela temos Cristo.

Cristo a salva antes de todos nós, preservando-a da culpa de Adão.

Porque, como Deus, Ele tudo vê e sabe num único ato eterno.

Como Deus, Ele dá o ser ao sim livre de Maria, e dá a Maria o ser total e livremente sim em vista dos méritos da Cruz, em vista do seu amor por nós.

Maria é Mãe. E é Virgem (Lc 1,26s).

Ela é Virgem, não porque a união conjugal tenha alguma impureza ou seja má.

Ela é Virgem porque é total sua consagração a Deus.

Ela pertence totalmente ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo.

E é justamente por tal pertença que ela é fecunda: ela gera o Cristo, cabeça e membros.

Ela é Mãe da Igreja (Jo 19,25-27).

E a Igreja é Mãe como ela.

Ela é a parte mais sublime e espelho da Igreja em sua essência.

O que se diz da Igreja aplica-se a Maria Santíssima.

E o dizemos de Maria Santíssima pode ser aplicado à Igreja.

A Igreja, como Maria, é Virgem e Mãe.

É Santa e Imaculada (Ef 5,27), pois os pecados de seus filhos não fazem parte do seu ser.

O que faz parte do seu ser é a graça e a reconciliação, o poder de santificar e conduzir sem erro ao Céu.

Maria, ao final de sua jornada terrestre, foi levada ao Céu em corpo e alma, e já vive e reina com Cristo (Ap 11,19-12,1).

A Igreja, no fim dos tempos, também será exaltada. Os eleitos ressuscitarão para a vida e reinarão com o Senhor do qual se alimentaram na Eucaristia (Jo 6,40.44.54; Ap 2,7.17; 3,21; 5,10).

Maria é uma miniatura da Igreja, a Igreja em uma pessoa singular.

Apenas Maria pode dizer perfeitamente: “eu sou Igreja”.

A Igreja no mundo é Maria que se faz em muitos ao longo tempo.

Maria como Igreja é o propósito do cosmos, é o Cristo recebido perfeitamente pela criação.

Ela é esposa do Espírito e, pelo sopro do Espírito, novos céus e nova terra.

A Nova Jerusalém, que está no Céu e descerá do Céu para que os homens nela habitem (Ap 21,1-2).

“Nela jamais entrará algo de imundo, e nem os que praticam abominação e mentira.

Entrarão somente os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro.” (Ap 21,27)

Rogai por nós, Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Amém.

Erro divino?

janeiro 29, 2019

– Deus nunca erra…
– Mas e o mal que existe no mundo?
– O mal não é causado por Deus. Ele existe fisicamente pela imperfeição intrínseca da matéria e moralmente pela imperfeição intrínseca da liberdade da criatura racional.
– Mas a Bíblia diz que Deus se arrepende.
– É apenas um modo de falar, típico da cultura semita.
– Mas tem gente que nasce assim, com um desajuste entre o corpo e a alma.
– Não há desajuste entre corpo e alma. Alguma combinação ainda pouco conhecida de fatores físicos e psíquicos pode resultar numa inclinação desordenada. Se esta inclinação é irresistível, não há culpa moral. Na maior parte dos casos, contudo, ela é resistível, porque o sujeito ainda conserva uma parcela de vontade livre.
– Você quer o mal para as pessoas que sofrem essas inclinações!
– Muito pelo contrário, quero que essas pessoas percebam que não são prisioneiras de seus desejos desordenados, mas que podem encontrar, em Deus, a graça de viver de modo casto e feliz. E, mesmo que caiam em tentação, Deus sempre estará ao seu lado oferecendo perdão e força para vencer o mal.
– Você é um fanático!
– Você pode me julgar assim. Eu, contudo, não estou querendo impor nada. Creio que a verdade impõe-se por si mesma.

Antropocentrismo

janeiro 29, 2019

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Ateu: “Ah, o homem é quantitativamente insignificante perante o mundo físico. Vivemos na periferia do Cosmo, como apontaram Copérnico e Darwin.”

Crente: “Não apenas isto, meu caro. O mundo físico é insignificante perante o mundo espiritual que o transcende. O Cosmo material é ele mesmo a última periferia da realidade. O homem é tão somente a fronteira final das coisas que Deus criou com um propósito. Ser o centro geométrico do Universo ou o ápice da evolução biológica, perto disso, é algo verdadeiramente insignificante.”

Problemas e contradições do materialismo

janeiro 29, 2019

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Se tudo são partículas em movimento, onde está o pensamento? Neste ou naquele átomo?

Se tudo que percebemos são sinais elétricos no cérebro, como um sinal elétrico percebe outro sinal elétrico?

Como um sinal elétrico sabe que tem cérebro?

Como um cérebro sabe que tem sinais elétricos?

Se tudo são propriedades abstratas da matéria: massa, carga, velocidade, aceleração, força, etc. então a matéria é imaterial?

Se a realidade física é uma estrutura matemática, somos feitos de números?
Números sentem, pensam, amam?

Se tudo o que existe só existe localmente e de modo independente de todo o resto, como julga Einstein, porque o Universo forma um todo extenso e coerente?

Se o que acontece aqui e agora é absolutamente separado do que acontece em outro lugar, como conseguimos apreender extensões e durações?

Se este impulso elétrico do lado direito do cérebro leva um certo tempo para chegar no lado esquerdo, como ele pode ser um pensamento capaz de apreender simultaneamente todas as partes de uma proposição e sua validade?

Se a mente é um software que “roda” no hardware cérebro, ela pode “rodar” em qualquer outro hardware equivalente. Logo, ela pode ser copiada como qualquer software pirateado. Onde estaria “eu” se meu software mental fosse copiado para uma matriz equivalente de silício? No meu cérebro ou no computador que executa o mesmo programa mental?

Algumas sentenças sobre predestinação, pecado e liberdade

janeiro 29, 2019

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I. Quem se salva, salva-se primeiramente por graça de Deus, porque todo o bem, mormente o sobrenatural, tem necessariamente Deus como Causa Primeira.

II. Quem se condena, condena-se primeiramente por sua própria culpa, porque todo o mal tem necessariamente origem no defeito do agente finito e, portanto, não divino.

III. Deus não abandona ninguém ao mal, mas dá a todos os meios e graças suficientes para alcançar o Bem Eterno.

IV. Se os réprobos só fossem capazes de fazer o mal, sua condenação seria injusta e absurda.

V. Deus condena os réprobos porque estes rejeitam o bem que poderiam ter escolhido livremente.

VI. Deus não condena os réprobos por um decreto absolutamente arbitrário de reprovação.

VII. Se Deus quisesse, porém, poderia salvar a todos, dando-lhes inclusive graça acima da medida necessária para atingir a bem-aventurança.

VIII. O grande mistério da predestinação é porque a uns Deus dá graças eficazes para a salvação e a outros apenas graças suficientes.

IX. Deus não é absolutamente obrigado a salvar ninguém.

X. Nenhuma criatura possui, por natureza, direito ao Céu.

XI. O certo é que Deus quer a salvação de cada um mais do que cada um quer a própria salvação.

XII. Querer a própria salvação já é receber a graça divina.

XIII. Não querer a própria salvação é rejeitar a graça divina.

XIV. A graça não anula, mas aperfeiçoa a liberdade humana, que não é uma ficção.

XV. Ser capaz de pecar é não ter a liberdade em plenitude.

XVI. Os santos na glória são perfeitamente livres, enquanto os cristãos que peregrinam na Terra não são perfeitamente livres.

XVII. Ninguém é mais livre do que Deus, e Deus não pode pecar.

Aforismos e parágrafos (in)tolerantes

janeiro 24, 2017

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No Velho Testamento Deus condena a idolatria com a pena de morte (Dt 13,7-19). No Novo Testamento não se diz nada contra isso, muito pelo contrário (1Cor 6,9s; Ap 21,8). Ora, a heresia é uma forma de idolatria. A falsa fé é a crença numa caricatura de Deus.

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Dizia São João Crisóstomo: “matar um herege é introduzir na terra um crime inexpiável”. No entanto, a experiência posterior com várias heresias (penso aqui especificamente no donatismo e no catarismo) indicava que a misericórdia era um risco altíssimo para os corpos e as almas. Um risco tão grande que fez com que o pensamento de Crisóstomo e outros santos seus contemporâneos (Martinho de Tours, Ambrósio, Dâmaso) ficasse esquecido ou fosse deixado de lado.

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Condenar os antigos por intolerância numa época em que o conceito de tolerância era desconhecido é como acusar a crueldade dos médicos de outrora que operavam sem anestesia.

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A medicina já acreditou sinceramente que a sangria era a melhor maneira de curar muitas enfermidades. Os homens da Igreja no passado acreditavam que condenar um herege impenitente à morte era a maneira mais adequada de destruir o erro. Ambos estavam enganados, mas queriam fazer algo bom.

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Numa sociedade fundada sobre o juramento e a fé, quem negava o juramento da fé era visto como um câncer o qual, não fosse extirpado logo, se espalharia pelo corpo social como uma terrível metástase destruidora do mais alto bem comum.

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As razões da intolerância religiosa do passado são, essencialmente, as mesmas razões da intolerância que temos hoje para com os crimes contra a vida corporal, especialmente o assassinato em massa.

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Não existiam meios para os homens de outras épocas compreenderem o abandono da fé como um mal aceitável. Para eles, a fé era tudo: a salvação, a vida eterna, a felicidade infinita. Perder a fé era perder o Sumo Bem, Deus, para sempre. O herege era um monstro que, afora perder o Céu para si, arrastava outros tantos consigo em sua ruína.

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Os reinos só deixaram de condenar hereges quando o mundo já tinha sido tomado pelo erro. O combate físico, grosseiro e limitado, fracassou na luta contra a heresia. Para a Igreja restaram apenas os meios espirituais. Melhor assim.

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A história dolorosamente nos ensina uma lição: que a heresia não se vence pela força, mas contra ela devemos resistir principalmente pela palavra e pelo testemunho.

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Algumas verdades só são assimiladas com a experiência, e não somente a partir dos primeiros princípios.

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Os santos transcendem de muitas maneiras sua época, mas nenhum mortal consegue viver completamente fora de seu tempo.

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Condenar um herege malicioso à morte pode ser justo, mas quem pode, especialmente hoje, sempre reconhecer acertadamente sua malícia?

A falibilidade da Igreja visível: uma tentação

janeiro 20, 2017

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O verdadeiro princípio do protestantismo, o ponto onde começa o seu erro, não é a Sola Scriptura, como alegam os próprios protestantes. Seguindo a tradição de usar uma expressão em latim, o verdadeiro princípio do protestantismo é a afirmação da Visibilis Ecclesiae Fallibilitas, a falibilidade da Igreja visível. Esta crença é o que nos revela a natureza verdadeira da rebelião de Lutero.

Dizer que a Igreja visível é falha implica necessariamente em se buscar alguma base mais sólida para estabelecer a fé. Onde encontrar tal base? Ora, ela só pode estar lá no início, na época em que a Igreja estava diretamente sob a tutela de Cristo e dos Apóstolos, ou seja, a Igreja das origens, presumidamente imaculada de erros em sua juventude pela proximidade de seu Fundador. Como, no entanto, é impossível construir uma máquina do tempo, o protestantismo tomou como alicerce de sua fé o elo mais seguro e objetivo possível supostamente capaz de conectá-lo ao nascimento da Igreja: as Sagradas Escrituras, conservadas e reverenciadas piedosamente pela Igreja Católica em sua liturgia.

A Sola Scriptura surge, portanto, como corolário da Visibilis Ecclesiae Fallibilitas, a dedução que Lutero e outros como ele fizeram quando julgaram que não podiam mais confiar na Igreja, por outros motivos (no caso de Lutero, escrúpulos e orgulho). De fato, não é um princípio difícil de compreender, já que a Igreja visível é formada por pessoas imperfeitas, pecadoras, contraditórias. Maus bispos e maus papas governavam a casa de Deus no século XVI. A situação do clero, moralmente falando, era realmente deplorável. Achar que a Igreja fracassara ou se desviara das origens era uma tentação sedutora, sustentada facilmente até mesmo pela observação de qualquer outro período histórico.

Disso o protestantismo tira outra conclusão: a reforma da Igreja, o retorno às Escrituras, à pureza original da Igreja primitiva, não é uma tarefa a ser feita exclusivamente neste século. É uma tarefa de todos os séculos. Ecclesia Reformata Semper Reformanda. A Igreja visível está sempre na iminência de trair o Senhor, sempre falível, sempre humana e imperfeita, nunca divina e inerrante. Não existe magistério eclesial seguro, apenas o retorno ao Texto Sagrado pode garantir sua fidelidade. Como Sísifo, ela deve sempre levar de volta para o alto da montanha bíblica a rocha de sua doutrina e começar de novo, e de novo, e de novo. Daí surgem os movimentos restauracionistas, “avivamentos”, novas denominações, novas maneiras de interpretar a Igreja nascente e viver a fé em Cristo como Salvador (*).

É quase desnecessário dizer que esse empreendimento de fracassos sucessivos e tentativas de retorno à fidelidade não pode, de fato, alcançar sucesso permanente. Primeiro porque a Escritura, mesmo inerrante e infalível, é insuficiente para reconstruir de modo adequado a experiência de fé dos primeiros cristãos. Nela lemos fragmentos do ministério de Nosso Senhor, narrativas de Sua Paixão, Morte e Ressurreição, alguns eventos esparsos das origens da Igreja, cartas apostólicas enviadas a algumas comunidades para resolver problemas locais e profecias apocalípticas. Nada há ali que se compare a uma descrição adequada da doutrina e da vida da Igreja primitiva (junte-se a esta quantidade insuficiente de informação o fato de que todo texto humano é ambíguo). Logo, é IMPOSSÍVEL reconstruir satisfatoriamente o cenário eclesial e doutrinal da era apostólica usando só a Bíblia. Este é um fato objetivo inquestionável.

Se a Bíblia não pode ser a ponte visível segura entre a Igreja de hoje e a de ontem, então só nos resta uma opção compatível com a crença na messianidade de Cristo: reconhecer que a própria Igreja visível é a ponte. Não há outro caminho, a não ser que se presuma que Nosso Senhor abandonou os fiéis a si mesmos e, portanto, não cumpriu suas promessas (conhecidas, aliás, através da própria Igreja, tanto na Tradição recebida como nas Escrituras preservadas por ela ao longo dos tempos). Sim, a Igreja visível demonstra muitas falhas, muitos cristãos fizeram coisas vergonhosas e indignas e muitas heresias e doutrinas falsas tentaram enganar os fiéis. Mas se acreditamos, realmente, em Nosso Senhor, não podemos ceder à tentação da Visibilis Ecclesiae Fallibilitas. Apesar de todas as misérias, excessos, abusos, desvios, pecados, indignidades e traições, a Igreja visível não pode ser destruída ou absolutamente corrompida. Ela deve permanecer até o fim do mundo fiel à sua substância. “Et portae inferi non praevalebunt adversus eam“, “e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18), que é a “ecclesia Dei vivi, columna et firmamentum veritatis“, a “Igreja do Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15) (**).

A Igreja visível exerce um papel materno, gerando discípulos para Cristo através do batismo, alimentando-os com a Eucaristia, preparando-os para o combate da fé pelo Santo Crisma, perdoando suas faltas no Sacramento da Confissão, abençoando a união de seus filhos no Sagrado Matrimônio (refletindo o mistério de sua união com Cristo), garantindo a continuidade do seu múnus de governar e ensinar todas as gentes através da ordenação sacerdotal e ungindo seus filhos doentes para a cura ou para o encontro final com seu Senhor. Em todas essas ações, ela cuida de nós, ela nos conduz até a Pátria Celeste. Ao rejeitar a Igreja visível, os protestantes, eventualmente, acabaram por deixar de lado também todo o elemento sacramental, os sinais visíveis que Nosso Senhor confiou à sua esposa visível para nos acompanhar do nascimento à morte.

Assim, temos muitos protestantes que rejeitam o batismo de crianças e consideram o próprio batismo apenas um rito de introdução na comunidade eclesial, ineficaz para perdoar os pecados, enquanto TODOS descartam de diversas maneiras a presença substancial eucarística, o sacramento que FAZ A IGREJA. Também o poder eclesiástico de perdoar pecados, a sacralidade do Matrimônio (divórcio e contracepção foram aceitos pelos nossos irmãos separados), a missão sacerdotal e a hierarquia (os pastores são leigos e sua autoridade não é sagrada) e até mesmo o último consolo e proteção espiritual antes da morte (protestantes acham que é desnecessário, pois o crente já está salvo) foram progressivamente excluídos dos credos e práticas protestantes.

Eliminando a maternidade da Igreja também se elimina a importância da maternidade de Nossa Senhora. É certo que Lutero conservava traços de devoção mariana (e, que Deus o ajude, espero que esses traços tenham-lhe servido para trocar o Inferno por um longo tempo no Purgatório), e mesmo os primeiros reformadores ainda tinham alguma reverência especial pela Mãe do Senhor. Mas isto logo se perdeu. Sem amar a Igreja visível, sem se submeter a ela, os protestantes também não possuem motivo para amar a Virgem Mãe que é seu ícone mais perfeito. Maria Santíssima passou a refletir a concepção eclesiológica da Visibilis Ecclesiae Fallibilitas: uma mulher comum, abençoada mas pecadora e útil por sua função de mãe biológica de Cristo, mas logo esquecida, minimizada, tornada insignificante. Parafraseando São Luís Maria Grignion de Montfort, não pode ter Maria por Mãe quem não tem a Igreja por Mãe. O ódio ou indiferença protestante em relação a Nossa Senhora espelham seus sentimentos pela Igreja Católica.

De todo o mal Deus tira um bem. Em oposição ao mal da pseudoreforma, Deus suscitou santos e uma reforma legítima que manifestou claramente a verdade contra o erro. Rezo e peço a Deus, entretanto, que nossos irmãos separados, um a um, e não por um ecumenismo falso, retornem um dia para os braços maternos, descobrindo o amor e a verdade que lançaram fora ao dizer sim para Cristo e não para a sua Igreja.

(*) Não que reformas NA IGREJA sejam desnecessárias, mas o protestantismo se desvia disso pregando a reforma DA IGREJA, ou seja, a própria essência eclesial se corrompe naturalmente com o tempo e precisa ser colocada em contato com a Bíblia para retornar ao seu estado (forma) de pureza primeva.

(**) Os protestantes alteram o sentido dessas passagens apelando para uma eclesiologia desencarnada, em que a Igreja verdadeira é na verdade invisível e formada por aqueles que buscam seguir fielmente as Escrituras, não importando a denominação. Essa perspectiva, contudo, é insustentável pela incapacidade da Bíblia representar adequadamente a Igreja originária.

Maria-Igreja

janeiro 20, 2017

mother_churchUma linha escriturística que nos conduz à Imaculada Conceição é a identificação tipológica entre a Igreja e Maria que, aliás, foi historicamente a via pela qual a Igreja compreendeu melhor o mistério da Mãe do Senhor. A Igreja gera Cristo virginalmente como Maria. O mesmo Cristo quer a Igreja “gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5,27). Em Maria, além do mais, realiza-se a continuidade e unidade entre a Antiga Aliança com Israel e a Nova Aliança com a Igreja: Maria é a recapitulação pessoal do “resto segundo a eleição da graça” (Rm 11,5), o resto santo que prova que a palavra de Deus realmente frutifica: uma judia, filha de Israel, que como tal é inteiramente cristã. Finalmente, no Apocalipse, a Virgem é a “mulher vestida de Sol” (Ap 12,1), ou seja, vestida de Deus, que é luz (1Jo 1,5), inteiramente preenchida com o amor divino, e que tem a Lua, ou seja, a mudança, a morte e a mortalidade, debaixo de seus pés, mostrando sua íntima associação com a vitória do seu Filho. Coroada com doze estrelas, ela personifica a própria Igreja: as doze tribos de Israel, os doze Apóstolos do Cordeiro, que gera no sofrimento, nas provações do mundo e, especialmente, pelo martírio, o próprio Cristo (Ap 11,2). O demônio, a antiga serpente, trava uma luta contra ela (Ap 12,13), mas ela é protegida (vv. 14-16), o que enfurece o Inimigo, que se volta contra seus descendentes, aqueles que “observam os mandamentos de Deus e mantêm o testemunho de Jesus” (Ap 12,17). Portanto existe uma inimizade radical, total, completa, entre Maria, a Mulher, e o demônio, recapitulando o protoevangelho do Gênesis. Ora, a Igreja paulatinamente entendeu que esta inimizade radical não pode ocorrer se Maria, em algum momento, esteve sob a égide do pecado, ou seja, se ela foi, ainda que só num instante, “propriedade do diabo”. Como escreveu Santo Agostinho de modo ainda impreciso, respondendo a Juliano de Eclanum, um bispo pelagiano deposto: “Nós não transferimos Maria ao diabo pela condição de seu nascimento, por esta razão, que esta condição é dissolvida pela graça de seu novo nascimento.” (Contra Juliano, IV, 122)

Santo Tomás negava os méritos dos sofrimentos dos santos em favor da Igreja?

janeiro 20, 2017

martyrdom-of-polycarpMas eu respondo que o sofrimento de Cristo nos foi salvífico não só como exemplo: ‘Também Cristo sofreu por nós, deixando-nos um exemplo, para que sigamos os seus passos” (1Pd 2,21), mas também como mérito e como eficácia, visto que por seu sangue nós fomos redimidos e santificados: ‘Assim Jesus sofreu fora do portão para santificar o povo pelo seu próprio sangue’ (Hb 13,12). Mas o sofrimento de outras pessoas é salvífico para nós somente como exemplo: ‘Se somos afligidos, é para o vosso conforto e salvação’ (2Cor 1,6).”

Sed dicendum quod passio Christi fuit nobis salutifera non solum per modum exempli, secundum illud I Petr. II, 21: Christus passus est pro nobis, vobis relinquens exemplum, ut sequamini vestigia eius, sed etiam per modum meriti, et per modum efficaciae, inquantum eius sanguine redempti et iustificati sumus, secundum illud Hebr. ultimo: ut sanctificaret per suum sanguinem populum, extra portam passus est. Sed passio aliorum nobis est salutifera solum per modum exempli, secundum illud II Cor. I, 6: sive tribulamur, pro vestra exhortatione et salute.
— Santo Tomás de Aquino comentando sobre 1Coríntios 10,17a, tendo em vista Colossenses 1,24

Alega um protestante que o sofrimento dos santos, segundo Santo Tomás na passagem acima, não pode ser salvífico para outras pessoas de modo meritório, mas apenas como inspiração e exemplo a imitar, contradizendo a leitura católica tradicional de que os méritos dos santos poderem contribuir efetivamente para a salvação de terceiros. Ele está correto?

Vejamos o que indicou Santo Tomás em outros escritos:

Como do sobredito resulta, as nossas obras podem ser meritórias, por duas razões. Primeiro, em virtude da moção divina, e então, merecemos condignamente. Depois, por procederem do livre arbítrio, pelo qual agimos voluntariamente. E por este lado, o mérito é côngruo; pois é congruente, que o homem, usando bem das suas capacidades, Deus obre mais excelentemente, de conformidade com a sobreexcelência do seu poder.

Por onde é claro que, por mérito condigno, ninguém, salvo Cristo, pode merecer para outrem a primeira graça. Porque todos nós somos movidos por Deus, pelo dom da graça, para chegarmos à vida eterna; e portanto, o mérito condigno não pode ir além dessa moção. A alma de Cristo, porém, recebeu, pela graça, essa moção divina, não só para alcançar a glória da vida eterna, mas também para levar os outros para ela, como cabeça da Igreja e autor da salvação humana, conforme a Escritura: levou muitos filhos à glória, ele o autor da salvação etc.

Por mérito côngruo, porém, podemos merecer para outrem a primeira graça. pois, o homem, constituído em graça, cumprindo a vontade de deus, é congruente que Deus, por uma amizade proporcional, cumpra a vontade de um relativa à salvação de outro. Embora, às vezes, possa advir impedimento por parte daquele a quem esse justo desejava a justificação.” (ST Ia-IIae, Q. 114, A. 6)

A cabeça e os membros constituem uma como pessoa mística. Por isso a satisfação de Cristo pertence a todos os fiéis, como aos seus membros. Assim, também quando dois homens estão unidos pela caridade, um pode satisfazer por outro, como a seguir se dirá. Mas o mesmo não se dá com a confissão e o arrependimento; porque a satisfação consiste num ato exterior, para o qual se podem empregar instrumentos, entre os quais se contam também os amigos.” (ST IIIa, Q. 48, A. 2)

Para entender corretamente, é preciso notar que Santo Tomás distingue claramente o mérito salvífico de Cristo (de condigno), colocando-o em outra ordem acima da do mérito dos sofrimentos dos santos em favor de outros (de congruo). A preocupação do Aquinate no texto aduzido pelo protestante é afirmar que os sofrimentos do Redentor nos dão a salvação de modo absoluto, eficaz e universal, coisa que nossos sofrimentos, por mais meritórios que sejam realizados em estado de graça, não podem fazer sozinhos, mesmo porque seu poder sobrenatural deriva necessária e unicamente da eficácia salvífica do sacrifício da Cruz. Os sofrimentos dos santos aproveitam à Igreja de modo intrínseco, portanto, não no mesmo sentido que os sofrimentos de Cristo, como se a estes faltasse algo em perfeição. Por sua própria natureza, os sofrimentos dos santos são tão somente sinais, exemplos, que nos apontam o caminho que devemos seguir, ou seja, remetem-nos ao sacrifício de Cristo, este sim, o único ABSOLUTAMENTE eficaz para a nossa salvação. Entretanto, isto não exclui a possibilidade destes sofrimentos contribuírem de modo secundário, em união – sempre – aos sofrimentos de Cristo, para a salvação destas ou daquelas almas. De outro modo, é apenas Cristo que nos livra da culpa e da pena eterna, enquanto os méritos dos santos nos liberam mormente das penas temporais e nos ajudam a tirar proveito da Redenção que Ele realizou. A nossa redenção foi realizada APENAS por Cristo, na medida em que Ele é a Cabeça da Igreja e o Autor da Salvação. Os santos, por outro lado, podem merecer a graça para outras pessoas com seu sofrimento somente por causa de sua amizade com Deus e, em todas as vezes em que isto ocorrer, será mediante o contato direto com a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo e seus infinitos merecimentos. Apenas Nosso Senhor Jesus Cristo é ABSOLUTAMENTE o Redentor da humanidade.

Ora, como dissemos antes, um pode satisfazer por outro. Os santos porém, cujas obras encerram uma superabundância de satisfação, não nas praticaram por ninguém que em particular precisasse de perdão, pois do contrário, conseguiria esse o perdão sem necessidade de nenhuma indulgência; mas as praticaram, em geral para toda a Igreja, como o Apóstolo diz de si, que cumpre o que resta a padecer a Jesus Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja, à qual escreve. E assim, os referidos méritos são comuns a toda a Igreja.” (ST Suppl. Q. 25, A. 1. O suplemento da Suma não foi escrito por Santo Tomás, mas usa outros de seus escritos como fonte)

Para resolver esta questão, deve-se notar, como dito antes, que a obra de uma pessoa pode trazer satisfação para outra designada em sua intenção.

Mas Cristo derramou seu Sangue pela Igreja, e fez e sofreu muitas outras coisas que são consideradas de valor infinito em razão da dignidade de sua pessoa. Assim lemos no livro da Sabedoria (Sb 7,14) que nela “há um tesouro infinito para os homens”. DO MESMO MODO TODOS OS OUTROS SANTOS TINHAM A INTENÇÃO, NAS COISAS QUE SOFRERAM E FIZERAM POR DEUS, de produzir o bem não apenas para si mesmos, mas para TODA A IGREJA.” (De quolibet 2 8.2 corp.)

Uma explicação adicional do pensamento do Doutor Angélico sobre o mérito dos sofrimentos dos santos encontramo-la em uma obra do Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, de onde retirei alguns argumentos apresentados acima:

Como observa Cajetano, surge uma dúvida em relação a esta resposta [os sofrimentos dos santos são apenas exemplo e exortação para os fiéis, e não meritórios], porque diz o santo Doutor em outro lugar (Com. in IV Sent. d. 20, a. I, quaestiuncula prima) que o tesouro da Igreja, do qual as indulgências derivam sua eficácia, contém os sofrimentos dos santos. O Papa Clemente VI (N. do T.: 1342-1352, defensor e promotor da obra de Santo Tomás) expressamente afirma o mesmo (Denz. ns. 552, 757, 1471, 3051). Mas é um fato evidente que os sofrimentos aplicados a nós através das indulgências por via de satisfação e, deste modo, por via de redenção, são benéficos para a Igreja [assim o justo pode merecer de congruo (por conveniência) a conversão de um pecador, como Santa Mônica mereceu a conversão de Santo Agostinho. Ver-se também Ia IIae, q. 114, a. 6].

Cajetano acertadamente responde esta dificuldade dizendo: ‘O autor tem em mente, no entanto, os sofrimentos dos santos absolutamente considerados. Logo entre os sofrimentos de Cristo e os sofrimentos dos santos existem muitos pontos de diferença. O primeiro está na palavra ‘sofrimentos’. Pois os sofrimentos de Cristo absolutamente redimem a Igreja, enquanto os sofrimentos dos santos não o fazem absolutamente, mas satisfazem em nosso favor apenas por modo de superabundância, como dito por Santo Tomás aqui e como é ensinado na bula de Clemente VI. A segunda diferença está na palavra ‘redenção’, pois a Paixão de Cristo nos redime absolutamente, uma vez que ela nos liberta da culpa e da punição. Mas os sofrimentos dos santos nos redimem apenas em um sentido relativo, a saber, de um certo tipo de castigo, a pena temporal devida pelo pecado atual. O terceiro está na palavra ‘benéfico’. É porque a Paixão de Cristo beneficia a Igreja de modo redentor, mesmo que não exista ação da chave da Igreja para nos abrir a sua porta; mas os sofrimentos dos santos são satisfatórios em meu favor apenas quando a autoridade do poder das chaves é aplicada a mim.’

‘Portanto são muitas as condições necessárias para assegurar o fato de que os sofrimentos dos santos beneficiam a Igreja de modo redentor, e por esta razão a resposta afirmativa é apenas relativamente verdadeira; poderíamos simplesmente e incondicionalmente negar a asserção sem qualquer prejuízo para a verdade, e dizer que os sofrimentos dos santos não beneficiam a Igreja deste modo. E, junto com a verdade desta conclusão negativa, fica evidente que o mesmo deva ser dito da doutrina a respeito da eficácia das indulgências dos méritos dos santos’ (Com. in IV Sent., d. 20, a. I, quaestiuncula Ia. Ver também Cajetano, Com. in Ep. ad Gal., 120, e seu tratado De fide et moribus contra Lutherum, cap. 9, traduzido por Em. Mersch, S. J., in seu ‘Le corps mystique’, Etude de théol. historique, II, 275). Tal é a conclusão de Cajetano. Mais sucintamente, é apenas Cristo que nos liberta da culpa e do castigo eterno, enquanto os méritos dos santos nos libertam da pena temporal, e isto apenas com base na compreensão prévia de que ‘nossa redenção foi realizada somente por Cristo… na medida em que Ele é a Cabeça da Igreja e o Autor da salvação humana, como ensina a Escritura, e os santos podem merecer a primeira graça para outros apenas de modo côngruo’ (cf. Ia IIae, q. 114, a. 6, c.; Hb 2,10).

Além disso, Santo Tomás torna seu pensamento mais explícito neste assunto ao comentar as palavras do Apóstolo: ‘Completo aquilo que falta ao sofrimento de Cristo’ (Cl 1,24). Diz ele: ‘Estas palavras, tomadas literalmente, poderiam ser interpretadas em um sentido errado, como indicando que a Paixão de Cristo foi insuficiente para nossa redenção, e que os sofrimentos dos santos lhe foram acrescentados para complementá-la. Mas tal modo de ver é herético, porque o Sangue de Cristo é suficiente para redimir até mesmo muitos mundos… Estas palavras, no entando, devem ser entendidas como significando que Cristo e a Igreja constituem uma pessoa mística, cuja Cabeça é Cristo e o Corpo são todos os justos. Qualquer justo é, por assim dizer, um membro desta Cabeça… Contudo, Deus ordenou e predestinou quanto mérito deveria existir em toda a Igreja, na Cabeça e em seus membros, do mesmo modo que predestinou o número dos eleitos. Entre esses méritos os sofrimentos dos santos mártires são especialmente incluídos. Os méritos de Cristo, a Cabeça, são infinitos; mas cada santo contribui proporcionalmente com sua fração de méritos… Logo também todos os santos sofrem pela Igreja, que é fortificada pelo seu exemplo’ (Com. in Ep. ad Col.).

Destarte, Cristo somente é o Redentor. (…) Finalmente, uma vez que os méritos de Cristo são infinitos e os dos santos são finitos, pode-se dizer que os sofrimentos dos santos acrescentam algo que não é intensivamente, mas apenas extensivamente finito, como quando dizemos que Deus e a criatura não formam mais ser que Deus sozinho, pois depois da criação existem mais seres, mas somente extensivamente mais do ser. Logo, somente Cristo é absolutamente o Redentor do gênero humano.” (Rev. Reginald Garrigou-Lagrange, Christ the Saviour – A Commentary on the Third Part of St. Thomas’ Theological Summa, Ex Fontibus Company, 2012, pp. 597-599, minha tradução).